quarta-feira, 4 de agosto de 2010

DEVANEIOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA


Aqui estou eu, um ator do século XXI; dos tempos modernos; da alta tecnologia às voltas com uma obra literária clássica. Não apenas uma obra, mas sim “a obra”. Trata-se de El Ingenioso Hidalgo don Quijote de la Mancha, o nosso famoso dom Quixote, de Miguel de Cervantes Saavedra. Uma obra que atravessou quatro séculos para me atormentar nos dias atuais.
Assim como tantos – escritores, pintores, escultores e pessoas simplesmente com o péssimo hábito da leitura – me apaixonei por esta esplêndida e cruel obra, a ponto de possuir dez diferentes volumes sobre a história de nosso famoso fidalgo. Desde uma edição espanhola de 1878 a uma miniatura, contendo toda a história na íntegra, onde só pode ser lida (acredite se quiser) se usada uma lupa.
Toda esta fixação me fez investir em um projeto megalomaníaco, ao meu ver, onde resolvi montar a novela de Cervantes para teatro de rua usando uma linguagem contemporânea, o que para mim é quase um paradoxo, pois, como transportar esta figura do século XVII, tão presente no imaginário popular, para os dias atuais?
Pode parecer óbvio para você, caro leitor, onde devesse eu me apoiar para realizar a minha difícil tarefa de transcriação literária: este mundo, cheio de injustiças, em que vivemos; guerras devastadoras por coisas tão ínfimas; o homem destruindo o seu próprio habitat para uma suposta evolução; – e o que mais se parece com nossos dias atuais – a falta de figuras ideológicas, utópicas, que queiram desfazer agravos e endireitar tortos. Um herói, mesmo que seja um anti-herói, para trazer esperança a um mundo esquecido, uma Idade de Ouro perdida para sempre em nossa eterna Idade de Ferro. Um dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança. Despreparados para encarar tais aventuras, mas com vontade de mudar as coisas ao seu redor.
Eis a pergunta que faço, não só a você mas também a mim, e que me atormenta tanto nesta minha longa e árdua jornada (ou seria aventura?): onde está dom Quixote? Ou seria melhor dizer: onde estão nossos dons Quixotes? Quem são eles? Quando irão se despertar; se enlouquecer e sair pelo mundo contagiando uma legião de escudeiros para acompanhar-lhes nesta difícil aventura.
Digo que todos devemos ser Sanchos, mesmo que não haja ilhas a que governar, nem ruços a que cavalgar. Aceitar as pauladas que nos derem e os manteamentos que nos alçarem aos céus. Devemos ser Quixotes, mesmo sem Dulcinéias a quem servir – pois mesmo a própria foi uma desculpa criada para se lançar ao mundo – ou sem Rocinantes a quem se apoiar. Exércitos ou carneiros; castelos ou vendas; princesas ou meretrizes; gigantes ou moinhos de vento. Não importa o que vier pela frente. Precisamos da loucura utópica de um dom Quixote para que nossa época não se torne uma lacuna na história.
Há algum tempo escolhi ser um dom Quixote e espero realizar uma parte desta utopia através deste espetáculo. Para isso encontrei alguns companheiros que fossem comigo nesta jornada. Seriam eles novos Sanchos, ou assim como eu outros Quixotes. Não sei responder. Sei apenas que será uma aventura prazerosa, onde participar da luta é mais gratificante que ganhar a guerra.

Samir Antunes
05/03/2010

Texto criado para o processo de montagem do espetáculo Don Quijote do Grupo Peripatéticos.
Leia este texto também, e outros, no jornal virtual Via Fanzine.

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